3 de fev. de 2012

Mocotó de gente

"E, se o homem foi uma maneira de aprisionar a vida, não será necessário que, sob uma outra forma, a vida se libere do próprio homem ?"
Gilles Deleuze, Conversações.


Foto de Rafael Caetano



O facão corta a panturrilha do sujeito. O pedaço do corpo desmembrado rola pelo chão como carne em açougue. Um pouco de sangue respinga no rosto do açougueiro. Limpa o sangue com a manga da camisa de marca. Com a grana que ganhar pago a dívida e compro outra melhor. Esse filho da puta até pra morrer deu trabalho...  Comedia medido a pegador. Vamos logo porra; esse troço tá fedendo.

Não via a hora de acabar. O matador pequeno com um machado na mão fuma um cigarro olhando o matador de uns dois metros cortando como mocotó ossos. Com golpes certeiros de facão e machado o que era homem vira mocotó.

Tá bom chega. Vamos logo com isso que esse Zé galinha ladrão de mulher do zoto... Tá bom cara chega de lembrar. Ok. Fala o matador pequeno suando muito. Fuma com foracidade. Só mais uns corte para poder caber no saco... E a fala é interrompida pelo bater da lamina afiada em pedra na junta de algum osso.


Cara pega o saco de lixo. O matador pequeno vai até o lado de fora do barracão. Bate a porta com força como quem deixa transparecer nos sons emitidos a sua raiva do mundo.
Os sons dos golpes de facão no mocotó são ouvidos do lado de fora do barracão. Uma, duas, três, quatro, cinco... E outros muitos golpes são dados pelo matador de uns dois metros dentro do barracão e ouvidos pelo matador pequeno do lado de fora.


Maldito tinha que ser morto num sábado à noite? Vai com suas pequenas mãos vasculhando o entulho do lado de fora do barracão. Está escuro e os olhos ali apanham feio. Toca algo. Esse dá. Volta para dentro.

Entra e bate a porta com a sua irritação costumeira. Vê o matador de uns dois metros despejar diversos golpes no já despedaçado morto. Para! Vamos colocar dentro do saco.
O matador de uns dois metros olha seu companheiro de oficio e limpa o sangue nos braços e rosto com a camisa de marca que usa. Sujou minha camisa esse filho da puta metido a garanhão... Vamos logo com isso cara! As quatro mãos trabalham com a agilidade do nojo provocado pelos pedaços de nefandade tocados.

Em instantes o saco fica cheio de pedaços de mocotó de gente. Vamos enterrar isso. Ordena ou solicita o nojo presente ali.

Saem do barracão posto na solidão desértica necessária aos crimes. Todo o caminho é de barro. Barro molhado pela chuva que cai pouco a pouco. Um deslizar dos pés é o inimigo de quem por ali passa. Passa o matador pequeno que fuma para aliviar a irritação com o mundo. O acompanha o homem de quase dois metros. Ele carrega o saco cheio de mocotó de gente, anda trôpego e resmunga algo incompreensível.


O Caminho barrento e incline é vencido com silencio de quem trabalha para o fim chegar logo. Caminham. O matador de uns dois metros interrompe a caminhada. Toma. E o saco é estendido para o esforço do matador pequeno. Põe o saco cheio de mocotó de gente no ombro direito e segue. Com a mão esquerda segura o machado.

No principio tem a dificuldade que o escuro dá aos olhos. Escorrega ainda umas duas vezes antes de dá os dez primeiros passos no terreno incline e barrento. Quando avista o seu companheiro de oficio vê que ele, já longe, abre caminho com o facão na mata fechada. Resmunga algo. Aqui tá bom. Pará o matador de uns dois metros assim que chega a uma clareira dizendo ser o fim da ladeira subida por eles. O matador pequeno joga o saco cheio de mocotó de gente no chão.


Agora vamos enterra o saco. Como se não tem pá? Você não trouxe a pá? Não. Idiota! Sempre pagamos por sua burrice se deixamos isto aqui vão descobrir e... O desespero da consciência criminosa aflora na voz do matador de uns dois metros que se agita de um lado para o outro.
Acalma! São apenas cinco mil, vamos deixar aqui. Acende um cigarro como para dizer que tudo ficaria bem, afinal o mocotó de gente dentro do saco não sairia dali. Continua em tom de deboche: e afinal o cara assim não comerá sua mulher.

 O soco é dado bem no queixo e o cigarro torto na boca do matador pequeno aponta na direção contraria ao machado caído no chão. Veado! Filho da puta é por causa do seu vício que tomo nessa. Nada; tu também deve grana pro cara que eu sei... E tem mais todo mundo sabe que tu ainda tá devendo aquele desfalque no caixa da firma. O outro revida: ele se fudeu porque tua mulher é uma vadia memo...

O golpe na perna direita do matador de dois metros o faz calar. Avançar com o facão em direção ao oponente. Trocam golpes na escuridão da noite.
Dois assassinos brigam na vastidão cerca dada pelo escuro. A certeza da vitória esta no toque da arma no corpo inimigo. A provável derrota no sentir o toque da arma alheia na própria pele e no sangue a escorrer e a mistura-se com barro do chão.

Após golpes dados no nada os dois homens exaustos pela briga e ferimentos caem no barro e vivem a hemorragia do abandono. Olham um para ao outro. Espreitam para ver quem morrerá primeiro. Por maldade ou coincidência morrem no mesmo momento, enlameados e sozinhos. O saco cheio de mocotó de gente ainda está ali. Fica por ser enterrado, jogado no chão o mocotó que já foi um homem.


RVC


Rio, deus Castanho.