3 de jun. de 2010

Análise de um assassino de personagens

“Há dois tipos de escritor: os que escrevem por amor do assunto
e os que escrevem por escrever.”
(Schopenhauer, Sobre o oficio do escritor 1 [272])


I

   Mata a Virgem com punhaladas. Ela mereceu, afinal durou 88 minutos. Pontua o final do roteiro com a ponta do dedo indicador acentuadamente inclinado para a direita. Acaba de escrever um novo filme de terror. Este homem magro, calvo e com olheiras roxas e enormes é Tonatus. Ele veste negro todos os dias que pode. Como agora. Hoje ele vai até o escritório de uma produtora entregar o seu ultimo roteiro: “A morte da Virgem.” Nesse roteiro, como em qualquer outro escrito por ele, pessoas morrem. Não o queiram mal por isso ; é só o seu oficio de escritor, e como todo oficio tem suas dores.



II

   Gosto do que faço. Sempre li imagens nos grandes romances. A montanha mágica, Dom Casmurro, os de Lima Barreto e em Macunaíma. Ah sempre li imagens! Agora as escrevo. Sei que tal trabalho pode parecer, aos olhos do mero consumidor de filmes nada. Talvez o cinéfilo de fim de semana ache que é o diretor a fonte única de criatividade de um filme. Nem passa pela cabeça dele que as imagens vem da pena, ou melhor, do Nootebook do roteirista. Sou um deus... Me deixa no 200 da Rio Branco.

Essa cidade e sua merda de trânsito. Porra se desse pra todo dia ser feriado, puta que pariu vai dá uma nota esse caralho de bandeira dois!



III

   _Qualquer dia o Rio acaba não ? Com essas ultimas chuvas ? – o motorista do táxi usa de seu repertório de assuntos comuns ao carioca- Cê viu o jornal do meio dia ? Nossa muito desabrigado, não ?
_ É. A morte ainda é inevitável- com essa única frase seca Tonatus cala o motorista que liga o radio. O pobre homem torce para chegar logo ao destino desejado pelo passageiro.



IV

   Veja este homem. É um mero motorista. Será que pode suportar sua vida? Se um dia ele for representar a humanidade diante de um tribunal; seremos todos culpados. Sofro só de pensar em sua mediocridade. Me aparece um boneco sem razão e vontade. Como pode suportar o sofrimento?

   Nas práticas esportivas a dor no inicio é insuportável. O corpo parece está sobre tortura. A dor é soberana até que o atleta se habitue a ela. O esporte ensina o homem a conviver com a dor, não a esquece-la... Também tiver momentos insuportáveis de dor. Como, por exemplo, ao ser demitido. Não ter emprego pode ser bom na visão de um escritor. Ele poderá escrever mais, pois terá tempo livre para isso. Agora se este motorista perder seu emprego o que sobrará para ele? Somente a dor do desemprego. A dor para ele não é algo suportável, mas anestesiado. A vida lhe obrigou a esquecer o sofrimento em favorecimento ao seu sustento. Vai passar impune e esquecido por aqui. Já eu ficarei para sempre por causa da minha arte. Por que não chego logo?


IV



   Os jornais trazem em suas páginas de cidade a seguinte noticia : Acidente na A.V Rio Branco.
Um acidente na tarde de ontem na Av. Rio Branco, na altura do numero 2000, envolvendo um táxi e um caminhão fez duas vitimas: O motorista do táxi Carlos Luis, 46 anos, e Tonatus Nero, 31 anos.

   Tonatus Nero era roteirista e seguia para o escritório de uma produtora localizada no centro. O carro onde estava bateu em um caminhão de gasolina e pegou fogo. Tonatus e o motorista ficaram preços nas ferragens no carro em chamas. Os dois não resistiram aos ferimentos e queimaduras.
Os bombeiros acharam entre os destroços do táxi paginas de um roteiro inédito que seria de Tonatus. Infelizmente todo o conteúdo foi destruído pelo fogo e a nova obra está totalmente perdida.

   O acidente causou um enorme engarrafamento que foi da Av. Rio Branco até o Aterro do Flamengo. Duas horas após o acidente a Rio Branco foi liberada para o trânsito.

RVC